Segundo o filósofo Sócrates, a um homem bom não é possível que ocorra nenhum mal, nem em vida nem em morte. Mas por que será que os vivos têm tanto medo de pensar na morte, se, de acordo com Platão, a morte seria a libertação da alma, daquilo que nos aprisiona ao corpo físico? No cancioneiro popular, há uma cantiga datada de muitos anos, que os avós nos ensinavam para amenizar o medo que sentíamos de algo. Canta-se assim: "Tá doido, moço, não faça isso, não! Vou embora, vou sem medo dessa escuridão. Quem anda com Deus não tem medo de assombração, e eu ando com Jesus Cristo no meu coração."
No Brasil, o Dia de Finados, celebrado em 2 de novembro, é uma ocasião em que prestamos homenagens aos que já se foram habitar outras dimensões. Esse dia é como um rito de passagem coletivo, um encontro silencioso entre mundos, onde revivemos lembranças, nos despimos das saudades e nos tornamos, por um instante, mais próximos do que chamamos de eternidade.
O encontro do sagrado e da memória: um olhar histórico
O Dia de Finados tem raízes profundas no imaginário humano, sendo um reflexo de nossa necessidade ancestral de dialogar com o mistério da morte. Povos antigos, como os celtas, viam o ciclo da vida e da morte como uma roda em movimento eterno, onde vivos e mortos coexistiam no mesmo plano. A chegada do cristianismo trouxe um novo simbolismo, e os rituais de homenagem aos mortos tornaram-se atos de fé, sustentados pela esperança de um reencontro celestial. A tradição se consolidou como um dia de reverência, onde misturamos saudade e oração, num desejo de consolar os vivos e confortar aqueles que já seguiram adiante.
Entre luzes e lembranças
O que essas homenagens aos mortos revelam sobre nós, os que ainda percorrem o caminho da vida? Talvez sejam um sussurro de que, no íntimo, sentimos que a morte não é um fim, mas um portal para uma eternidade de afetos. Na arte de recordar, preservamos a presença daqueles que amamos, como se o tempo pudesse ser tecido pela lembrança e transformado em eternidade. Não é o corpo que realmente se vai; é o amor que perpetuamos, aceso, como uma chama sagrada, ardendo silenciosa e infinita na vastidão da nossa memória.
Reverenciar a passagem é, portanto, uma maneira de desafiar a finitude, de crer que algo em nós se perpetuará no coração dos que ficam. E, para os espíritas, a morte é apenas uma travessia. Aqueles que partem são faíscas que continuam a iluminar, e cabe a nós mantermos viva essa luz, lembrando-nos de que as ligações verdadeiras não se apagam.
Aceitar a morte e honrar a vida
A morte, para muitos, ainda se reveste de mistério e medo. Vivemos como se fugir de sua sombra fosse a solução, mas é na aceitação de sua inevitabilidade que encontramos a verdadeira magia de viver. A transitoriedade é uma bênção, um lembrete silencioso de que cada instante que vivemos é divino, cada gesto, uma dádiva única. Quando encaramos a finitude sem medo, nossos dias adquirem uma profundidade quase mística, e os momentos se tornam mais preciosos e poéticos.
Lembrar dos que partiram significa generosidade e coragem: reconhecemos a fragilidade da vida e, em sua delicadeza, experimentamos uma forma pura de amor que não conhece fronteiras. Como disse Ariano Suassuna no Auto da Compadecida: “Cedo ou tarde cumpriremos nossa sentença; nos encontraremos com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre”.
O mistério da eternidade
Em nossas reverências aos mortos, descobrimos que o esquecimento de quem partiu é a única morte que existe. Recordar e lembrar são atos de existência em duas dimensões: o visível e o invisível, o real e o imaginário. Cada lembrança que nutrimos, cada prece que sussurramos, mantém viva a essência dos que amamos, uma prova de que, para além da vida, há o que perdura em cada fio de saudade e amor que se sente por quem já se foi.
“Não há morte, há esquecimento; a alma vive enquanto se lembrarem dela.” Se não quiser ter a sua existência apagada pelo tempo, pelo esquecimento… Se desejar ser lembrado pelos vivos, mesmo quando não mais estiver por aqui, simplesmente escreva e publique!